Regresso às aulas o tanas! Aquilo era voltar a ver a Susana
Fica para sempre aquele cheiro a livros novos, os livros da escola, ainda por forrar, e com os cantos direitinhos, os cantos que eu sabia que mais dia menos dia estariam encaracolados para fora, e as páginas riscadas com sublinhados manhosos, invariavelmente tortos, feitos a caneta (“não se sublinha a caneta”, queixava-se a minha mãe, e ainda se queixa hoje quem quer que me veja a rabiscar livros, porque continuo a fazê-lo). Hoje toda a gente diz “regresso às aulas”, mas naquela altura não havia cá regressos às aulas, havia o fim das férias grandes, aquele enorme período em que deixávamos de ver os colegas de todos os dias e ficavam só os amigos mesmo amigos, aqueles a quem telefonávamos para casa para combinarmos brincar na rua ou jogar computador em casa uns dos outros.
Quem anda hoje pelos 35, 40, 45 anos deve sentir estes dias dos anos 80, inícios dos anos 90 com a mesma nostalgia que eu, altura em que a maior preocupação da minha vida era garantir que o gravador velho que usava para carregar as cassetes do Spectrum funcionava bem e não me estragava a fita dos jogos.
“Hoje toda a gente diz “regresso às aulas”, mas naquela altura não havia cá regressos às aulas, havia o fim das férias grandes”
Provavelmente são estas mesmas pessoas, hoje pais, que acompanham os filhos, agora sim, no “regresso às aulas” e voltam a sentir o tal cheiro dos livros novos, que muito provavelmente não vão ser forrados — ainda se forram os livros escolares? — mas inevitavelmente acabarão o ano com os cantos encaracolados. Pelo menos comigo está a ser assim.
Antes de ir de férias, cumpri com essa missão de pai que é a de ir encomendar os livros do quinto ano para o meu filho mais velho. “Como é que eu, um miúdo, já tenho um filho no ciclo?!”, perguntava-me cá dentro enquanto mostrava ao senhor da papelaria a lista dos manuais. É que mesmo já estando nos 40 continuo a achar que sou um miúdo, sobretudo porque quando era puto via as pessoas de 40 anos como velhas, adultos, mas se calhar a crise de meia idade não me deixa aceitar que hoje, para os miúdos da idade do meu filho, eu sou efetivamente um velho — “sou nada, continuo a ser um jovem”, insisto cá para mim. Ãh, ãh.
Naqueles tempos, os primeiros dias de aulas sempre foram uma enorme excitação. Sobretudo no nono ano, quando decidi seguir a área de Desporto e fui parar a uma turma só de rapazes, quase todos mal comportados, repetentes, maus alunos, e que resolveram eleger-me, pela primeira e única vez na minha vida, delegado de turma. Foram os melhores primeiros dias de aulas de sempre, muito por culpa da Susana. A Susana era a miúda mais gira da turma — só havia quatro, não era difícil — e, para mim, uma das mais giras da escola. Eu, com 14 anos, nunca tinha tido uma namorada, e tinha a certeza absoluta que também não me iria estrear com a Susana, que obviamente não ia olhar para um puto anti-cool como eu, que não me portava mal, não era popular, não era particularmente bonito, não me vestia à bad boy, não tinha cabelo de surfista, nem uma DT para impressionar as miúdas (vim a ter dois anos depois, quando já tinha namorada e não precisava de impressionar ninguém).
A história com a Susana foi aquela que eu sabia que iria ser. Acho que só lá para Dezembro é que ela soube o meu nome, posso quase jurar que terá trocado três palavras comigo antes das férias de Natal, mas eu continuava a fazer planos secretos e íntimos com aquele corpo de jogadora de voleibol (não era, atenção, era só corpo), de pernas maciças, peito robusto e a cara sarapintada de sardas desgovernadas.
Só que um dia cortei o cabelo e as coisas mudaram. Foi tipo Sanção, mas ao contrário. Não sei bem porquê, mas deve ter saído particularmente bem aquele corte feito pela senhora do primeiro esquerdo, que trabalhava num cabeleireiro manhoso em frente ao prédio da minha avó. Deve ter saído tão bem, tão bem, tão bem, que no dia seguinte, no intervalo, a Paula disse à Susana.
— Olha lá para ele. Não fica tão querido assim?
Ainda olhei para trás para ver se era mesmo comigo. Até que a Paula, que não era particularmente bonita e fumava à homem, veio sentar-se ao meu colo e começou a mexer-me no cabelo. A Susana ficou a ver, divertida.
— Devias andar sempre assim. Ficas mesmo giro com esse corte.
E deu-me um beijo na cara. A Susana começou então a andar na nossa direção, e a cada passo o meu coração batia três vezes mais rápido. Parou ali ao lado.
— Ficas mesmo bem.
Não sei bem o que é que respondi, só sei que decidi, naquele momento, que nunca mais iria deixar o cabelo crescer mais do que um centímetro. Iria cortá-lo a cada 15 dias. Aquilo tinha de durar para sempre, até porque, pelos vistos, iria fazer com que o meu eterno jejum de namoradas iria terminar num espaço de dias, só podia — se até a deusa Susana olhava para mim, quando mais as mulheres comuns da escola.
A partir desse dia foram só sorrisinhos entre mim e a Susana, seduções infantis, coisas que me faziam voltar para casa, depois da escola, e começar a contar os minutos que faltavam até voltar às aulas no dia seguinte.
Nunca aconteceu nada entre mim e a Susana. Ela chumbou, como quase toda a gente naquela turma, eu fui para o décimo ano, mudei de Desporto para Humanísticas e ficamos com horários diferentes. Deixei de a ver. Até que nunca mais a vi.
A nossa história é a daqueles dias, os dias em que tive o melhor cabelo de sempre, e a atenção da miúda que torcia pescoços aos surfistas cool das DT. Hoje, chamam a isto “regresso às aulas”, como se fosse uma coisa chata.